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20.9.06

Estamira: a salvação no lixo

CINEMA*

A protagonista do documentário mais visto deste ano choca, surpreende e encanta. Sua história e personalidade são únicas e, ao mesmo tempo, contém reflexos e traços de milhões. Filósofa, mulher, guerreira, louca, lúcida e feiticeira, Estamira é várias mulheres em uma. O segredo da admiração que a história de uma catadora de lixo de 65 anos com supletivo incompleto pode provocar está em um documentário bem produzido, fruto de esforço contínuo, excelente fotografia e o discurso lúcido, místico, quase psicanalítico, de sua personagem principal.

Citando suas próprias palavras, Estamira não é comum. Sua missão é falar a verdade, apesar de hoje em dia só errar quem quer. Seu prazer é ajudar e querer bem seus filhos, amigos e netos. Não suporta erros, judiação, perversidade e humilhação. Nunca teve muita sorte: a única foi ter encontrado o trabalho no lixo. Apesar destas características poderem bem delinear uma pessoa sã, ela foi diagnosticada com quadro psicótico e portadora de alucinações.

Mas Estamira não é uma personagem rasa nem pode ser simplesmente tachada pela psicanálise. Seu discurso, por vezes, ultrapassa a simples loucura e transborda filosofia e lucidez em insights geniais como “lixo é resto e descuido”, “tudo é abstrato, até Estamira”, “existe o além e o além do além que o homem não conhece”, “na escola não se aprende e, sim, se copia” e “tudo que é imaginado existe, é e tem”. Ela também cria e cita abundantemente entidades misteriosas como o “esperto ao contrário”, o “trocadilo” ou “a que revela o homem como único condicional”. Elas são complementadas por um discurso anti-Deus e lembra os malogrados e vingativos-astutos que Nietzsche afirmava regerem a humanidade.

O segredo deste comportamento brilhante pontuado por acessos de raiva, revolta e extrema fluência parece residir em traumas da sua vida, que vão sendo pouco a pouco delineados pelo filme. O diretor optou por não colocar depoimento de cientistas e psiquiatras. O discurso de Estamira, pontuado por seus três filhos e amigos do lixão, segue uma ordem cronológica, com seqüências interligadas que apresenta progressivamente a realidade nua e crua de sua protagonista, sem meias palavras.

Em um debate com o diretor Marcos Prado, promovido pela Casa do Saber Jardins, descobri que a idéia do documentário foi permeada de acasos. Seu objetivo inicial era mostrar a transformação do lixão de Jardim Gramacho, localizado no município de Duque de Caxias - RJ, em um aterro sanitário. Com uma área de mais de 1.200m2, ele concentra 85% do lixo produzido na cidade do Rio de Janeiro.

Este processo duraria dez anos e começou em 1993. Foi apenas no sétimo ano que Marcos encontrou Estamira, ao perceber que não havia se aproximado daqueles trabalhadores que somavam dois mil. Inicialmente, pediu àquela senhora de estatura baixa, pele morena e rosto marcado pela idade e trabalho, se poderia fazer seu retrato. Em meio a tantas recusas de outros trabalhadores, Marcos encontrou receptividade e uma vontade de se expressar incomum. Daí para a idéia do filme foi um passo. Foram quatro anos de filmagens e a história do aterro, que acabou servindo apenas como seu pano de fundo, virou livro.

Marcos possui uma produtora e já tinha feito um documentário sobre o trabalho dos carvoeiros e co-produzido o já clássico Ônibus 174 com José Padilha. Acompanhado por uma equipe pequena composta apenas por um câmera, assistente de produção e som, em turnos de 12 horas enfrentou o mau-cheiro do lixão e aprendeu a lidar com traficantes e a prostituição da favela que rodeia o local. Com um gosto especial para temas áridos, seu próximo trabalho irá retratar o cotidiano da tropa de elite carioca.

Não é difícil saber que o diretor, além de documentarista, é também fotógrafo profissional. A fotografia do filme é seu ponto forte, juntamente com o toque especial de sua trilha sonora, que lhe proporciona momentos de poesia em meio à paisagem aterradora do lixão como a briga de dois cachorros por uma boneca ou a dança cronometrada dos urubus, devidamente valorizadas pela opção do filme manual preto-e-branco em contraposição ao colorido digital do resto do documentário.

O que poderia ser simplificadamente tachado como estética da pobreza é apenas instrumento para um fundo místico que combina com o discurso da protagonista. Uma cena belíssima mostra Estamira entrando no mar no começo de uma tempestade. Pequena em frente a grandes ondas formadas, ela chama por suas filhas marítimas e parece guiar misteriosamente os poderes da natureza.

O lixão onde Estamira trabalha, já transformado em aterro, está para ser transferido, pois já atingiu sua capacidade máxima. De acordo com Marcos, há a possibilidade dos novos não permitirem catadores, o que acarretará na perda de 15 mil empregos indiretos e 2 mil diretos. Autônomos, os catadores de lixo chegam a faturar R$1.100 por mês. São condições desumanas e insalubres de trabalho, onde se inala constantemente gás metano, que faz com que não haja vida rastejante no ambiente. No lixão, uma doença também pode se alastrar rapidamente e provocar a morte de até cem pessoas. Apesar disso, quase ninguém quer sair de lá, pois têm uma vida mais digna do que fora dele.

O documentário já ganhou 25 prêmios nacionais e internacionais, entre eles Melhor Documentário pelo Júri Oficial do Festival do Rio de 2004 e da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do mesmo ano, além de festivais de Londres, Miami e Viena, entre outros. O diretor é sincero ao demonstrar como este gênero ainda não é deglutido pelo público do cinema, apesar da marca de 22 mil pessoas nos cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, além de grandes patrocínios como Vivo e o apoio de leis de incentivo, já poderem ser considerados uma vitória.

Após recusar a internação, Estamira vive hoje à base de medicamentos tarja preta e um tratamento acompanhado mês a mês. Seu discurso pode ter se apagado pelas altas dosagens químicas, mas faço minhas suas palavras e concluo: ninguém irá mudar seu ser. Estamira é a beira do mundo, a visão de cada um e ninguém pode viver sem ela.

Marília Almeida

*publicado no Digestivo Cultural
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