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6.6.06

As gangorras de Hatoum


LITERATURA*
Milton Hatoum já é um escritor “meio” novo. Apesar de Dois Irmãos ter sido considerado por críticos literários o melhor romance brasileiro dos últimos quinze anos, ele já é visto como um escritor conservador diante da experimentação da nova geração, composta por autores como Sérgio Sant'Anna e Marçal Aquino. Mas, às vezes, é mais eficiente beber na fonte de clássicos como Falkner. E Hatoum o faz sem pestanejar.
Ele inova ao situar o romance em Manaus, na Amazônia da década de 50 e 60, e colocar como protagonista seus imigrantes árabes. Yaqub e Omar são irmãos gêmeos descendentes destes imigrantes. Do seu nascimento até os conflitos que progressivamente abrem um abismo entre eles, temos como pano de fundo a rápida expansão regional do comércio portuário, que tem seu ápice em pleno regime militar, quando imigrantes de todo país chegam à região em busca de abrigo. As mudanças e características dos bairros, os meios de transporte precário para cruzar o rio, os índios retirados de suas tribos e usados como empregados enriquecem o livro e mostram um Brasil pouco explorado na nossa literatura e, contraditoriamente, em estado bruto.
Dois opostos e um conflito. Dois Irmãos, lançado em 2000 e relançado este ano em edição de bolso pela Cia. das Letras, não é o único romance no qual Hatoum utiliza-se desta fórmula. Cinzas do Norte já contou a história de Mundo e Arana, dois intelectuais, um revolucionário amoral e um autocrítico moral. Yaqub e Omar são, respectivamente, a figura do ambicioso e a do imediatista, do racional e do irracional. Mas são os adjetivos patriota e subversivo que os tornará, inevitavelmente, perigosos um para o outro em tempos de plena ditadura.
A partir desta oposição, há o conflito inevitável. E, assim como em Cinzas do Norte, está sempre subentendido que a união dos dois opostos, tão requeridos pela irmã dos gêmeos, seria perfeita e ideal. O que era para ser apenas um conflito entre os dois envolve todos ao redor. O único que sai ileso e observa toda a degradação dos personagens do olho do furacão é o narrador, figurante com pouca ou nenhuma influência sobre os fatos e que vai sendo descoberto aos poucos. Tudo o que sobra é, como o autor bem resume em entrevista ao Digestivo, "a memória inventada da tribo".
O romance é permeado por um fio de tensão que nunca se arrefece. Fino, mas resistente e angustiante. Ao final, é desalentador. Não há soluções prontas e toda a tentativa dos personagens de se entenderem e viverem harmoniosamente vai sendo desconstruída aos poucos, como uma lenta tortura. Não há esperanças e isto pode se tornar um pouco exagerado e enfadonho, ainda mais quando se trata de uma família e eventos que, aparentemente, não mudariam a visão de uma pessoa com relação a outra ou criaria ódio.
Mas os personagens de Hatoum são fortes e dúbios. Puro sentimento e paixão. Portanto, perfeitamente humanos, oscilando entre o oito e o oitenta. Não temos como concordar totalmente com nenhum deles. Acabamos por cair na mesma armadilha que eles próprios: raspamos na intolerância com relação ao outro. E, ao fechar o livro, ficamos nos perguntando o porquê. E a resposta teima em se afastar de nosso raciocínio, indefinidamente.
Dois Irmãos é seu segundo livro, demorou dez anos para ser publicado e o foi nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália, Espanha, Portugal, Alemanha, Holanda, Grécia e Líbano. Seu romance anterior, Relato de um certo Oriente, ganhou o Prêmio Jabuti de 1990. Autor que se inibe com o sucesso, Hatoum é autocrítico e, apesar de ter passado sua infância em Manaus, declara separar bem sua biografia e obra. E não tem vergonha de assumir seu embasamento proveniente dos bons e velhos clássicos. Boa respirada e surpresa em meio a calorosa discussão sobre os novos autores nacionais.
Marília Almeida
* publicado no Digestivo Cultural

3 Comments:

Blogger Maurício Santoro said...

Marília,

cada vez que passo pelo seu blog e pelo do Idelber (O Biscoito Fino e a Massa) constato que preciso de mais espaço na biblioteca. Bela resenha.

Abraços

1:40 PM  
Blogger Marília Almeida said...

Obrigada, Maurício. É sempre bom saber que atingi meu objetivo mor.

4:35 PM  
Anonymous Anônimo said...

Marília, parabéns pela resenha. O texto está cada vez mais redondo.
Beijos.
Samir

8:40 AM  

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