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13.9.06

FLIP X FLAP

LITERATURA*
Grandes questões internacionais e memória de um lado. Questões regionais e crise da literatura contemporânea em outro. Muitas contradições em ambas. Foram estes os principais temas que encarei ao participar da
FLIP – Feira Internacional Literária de Paraty, e da FLAP – sigla que não tem sentido algum e pode soar como uma bofetada (na FLIP, logicamente). Apesar da FLAP ser muito nova, criada em julho do ano passado, e ainda não possuir a visibilidade e quantidade de participantes da FLIP, que está em sua quarta edição, juntamente com o festival paratiense pode ser considerada um festival literário relevante pela quantidade e diversidade de autores que reúne e a divulgação que conseguem fazer, cada um a seu modo, do segmento. Mas, afinal, o que ambos têm a oferecer? Esta briga tem sentido?

De outras áreas que envolvem o macrocosmo da cultura, a literatura parece ser o tema mais árido. Mesmo que todas as artes padeçam de falta de incentivos, mercado saturado e crise contemporânea de falta de bons autores frente a um mercado globalizado, isso talvez se intensifique na literatura por suas facetas editoriais diversificadas (só a questão do que é literatura já levanta um grande e polêmico debate), nas raízes da educação no país (aonde quase todas as artes vêm primeiro do que a literatura em termos de popularidade) ou mesmo em um certo ‘estrelismo’ que envolve o mercado.

Este estrelismo é veemente em ambos os eventos. Na mesa Periferias?, uma das mais polêmicas da versão paulista da FLAP, realizada no alternativo Espaço Satyros, localizado na Praça Roosevelt, o poeta Allan de Rosa caiu em contradição ao dizer que a literatura não precisa de glamour, mas "tem brilho". Já na FLIP o estrelismo residia mais no clima do evento do que propriamente em suas mesas de debate. É um evento caro, sem dúvidas, mas, mais do que isso, cria em torno dos autores a aura de intangíveis - quem pode pagar mais os vê de perto. Muito disso é também reflexo da crescente popularidade do festival. Hoje, é cool participar da FLIP. Afinal, atores globais o fazem, além de madames em férias, estrangeiros e universitários capazes de dizer que querem comprar um óculos igual ao da menina ao lado porque a faz "parecer inteligente".

Mas, com relação ao conteúdo e autores, ambos são válidos. Há, logicamente, uma disritmia, mas que não consegue prejudicá-los. Afinal, não é toda hora que podemos assistir a palestras de autores internacionais ou reunirmos, em uma única mesa, atores periféricos. A FLAP se sobrepõe em sua preocupação de discutir o mercado literário, em mesas como Gestão de Políticas Culturais, com a participação da vereadora paulista Soninha Francine. É muito bom saber que há movimentos e manifestos em andamento que visam criar um fundo para a criação literária, como exemplificado pelo escritor Ademir Assunção. Mas por outro lado, é extremamente desanimador o quadro dado por Soninha: da demora de aprovação de projetos e panelinhas constantemente beneficiadas. Algo um tanto quanto pisado e repisado. Imutável.

Foco principal da FLAP, que este ano o mudou um pouco para a literatura marginal (talvez porque muitos atores contemporâneos migraram para Paraty, como o próprio fundador da FLAP, Marcelino Freire, apesar de ter participado da FLAP-RJ), a FLIP não esqueceu de expor a literatura contemporânea. Uma das mesas que talvez melhor o fez foi Do Amor e Outros Demônios, composta por André Sant´anna, Lourenço Mutarelli e Reinaldo Moraes. Houve um bate-papo descontraído e bastante revelador dos três autores, com leveza que o próprio tema pedia. André leu trecho de seu terceiro livro, o elogiado romance O Paraíso é Bem Bacana, que tem como temática o terrorismo com uma visão bem-humorada. Lourenço estreou nos quadrinhos em 1991 e repisa no mal-do-escritor diante do papel em branco. Com mais de 50 anos, Reinaldo lançou seu primeiro livro e mostrou trecho de um ainda inédito. O fato de a mesa ter se destacado é por ter mantido o foco na criação dos autores. Questões como "para quem" e "como se escreve", influências e o embate entre o clássico e contemporâneo renderam bons depoimentos, como o de Reinaldo contando sua viagem com Foucault e muitas desmistificações encabeçadas por André, que, apesar de todo seu experimentalismo na forma e linguagem, afirmou que quer escrever um grande clássico.

Uma palestra oposta a estes preceitos foi a Profissão Repórter: Na Linha de Frente, composta pelo escritor, jornalista e deputado federal Fernando Gabeira, autor de O Que é Isso Companheiro, e o jornalista polemista (ou seria o contrário?) americano Christopher Hitchens. A grande reportagem de Gabeira feita em 1987, intitulada Goiânia, Rua 57 – O Nuclear na Terra do Sol, e sua experiência nos principais jornais do país, assim como o novo livro de Hitchens, Amor, Pobreza e Guerra, lançado durante o evento e que fala sobre o massacre de Ruanda, ficaram em segundo plano. Tudo o que se viu foi a sempre fútil troca de elogios entre esquerda e direita em um mundo com ideologias cada vez mais difusas e desesperadoras.

A FLIP talvez seja um evento interessante por dar a oportunidade de presenciarmos uma leitura de um poema árabe pelo seu próprio autor, o poeta palestino Mourid Barghouti. As lembranças e grandes questões políticas foi o tema da mesa Muitas Vozes, também composta pelo poeta Ferreira Gullar. Além da leitura e curiosidades sobre o seu clássico Poema Sujo, escrito em plena ditadura militar há 30 anos, Gullar é uma figura que sempre arranca aplausos em palestras em suas divagações sobre a própria poesia. Já Mourid, que viveu fora de seu país por 30 anos, mostrou todo rancor de um país sem pátria. Principalmente quando perguntado se concorda com o escritor israelense Amos Óz, de que israelenses e palestinos são um casal divorciado obrigados a viver na mesma casa. Mourid resumiu a palestra dizendo que conflitos como esses não cabem em afirmações tão simples assim. Ponto para a FLIP, por mostrar uma de muitas vozes esquecidas.

Por fim, há sempre a questão sobre a crise da literatura, presente na Off Flip e na FLAP. Na mesa Onde estamos?, da FLAP-SP, foram discutidos temas como a omissão e padronização da crítica literária atual, a homogeneidade de autores e os leitores modernos. Por outro lado, como bem afirmou o escritor Xico Sá, o mercado literário nunca produziu tanto, principalmente nos blogs literários que pululam por aí. Mas, enquanto a literatura contemporânea passa por uma crise de identidade, conforme pôde ser absorvido da FLAP, a literatura periférica se faz cada vez mais presente. Projetos como a Cooperifa, dirigidos por Sérgio Vaz, e iniciativas como as bibliotecas de Ferréz, pequenas, mas que começam a mudar o panorama desesperançado destas regiões urbanas, são uma luz a mais no mercado literário, extremamente necessária quando pensamos nos milhões de leitores não atingidos pela dita literatura de centro.

No fim, a FLAP e FLIP acabam se complementando. Não há sentido em se degladiarem. Cada um deles tocam em pontos úteis para a divulgação da literatura no país. São os bastidores de ambos que os diferenciam mais. A FLAP é organizada pelo Projeto Identidade, do qual fazem parte novos escritores e dos quais foram fundadores alunos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e da Faculdade de Letras e Direito da USP. Proclamando acabar com a fragmentariedade do mercado, profissionalizando-o na era do blog, o grupo possui meios de divulgação de nova produção a exemplo do jornal Casulo, focado em poesia contemporânea, e organizadores para receberem e discutirem trabalhos de escritores de todo Brasil. Já a FLIP é apoiada por gigantes como Companhia das Letras. No balanço que se pode fazer sobre ambos os eventos, tiramos mais vantagens do que desvantagens. E esperamos o próximo ano. Mais diversificado e, principalmente, atuante.

Marília Almeida

*publicado no Digestivo Cultural
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