Reflexos da ilha das utopias
Jogadores de dominó - Jorge Arche
A ilha das utopias e seu polêmico regime comumente faz parte do noticiário político, mas sua cultura acaba por ficar em segundo plano. A literatura cubana já tem nomes reconhecidos como Guillermo Cabrera Infante, Pedro Juan Gutiérrez e Reinaldo Arenas. Já sua música foi consagrada com o documentário Buena Vista Social Club, dirigido por Win Wenders. Retrato de um grupo de músicos veteranos que caíram no ostracismo, entre eles Ibrahin Ferrer e o guitarrista Ry Cooder, foi indicado ao Oscar e ganhou prêmios da Associação de Críticos de Nova York, Los Angeles e Florida, além do Cinema Brasil. Mas sua arte plástica, ainda desconhecida, merece igual atenção por sua riqueza, diversidade e por se constituir um reflexo fiel das agruras de seu minúsculo país.
É ela que a exposição Arte de Cuba, patrocinada pelo CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), de São Paulo, objetiva apresentar, em 117 obras do acervo do Museu Nacional de Belas Artes da ilha e coleções particulares de seus artistas. Retratando os diversos movimentos modernistas cubanos, desde o início do século XX, a exposição inclui pinturas, fotografias, esculturas e instalações das décadas de 60, 70 e 80. As artes plásticas cubana pode ter seu começo decretado com a Exposicíon de Arte Nuevo, em 1927, quando a busca do país por sua identidade nacional se tornou mais veemente. Sempre buscando acompanhar a vanguarda européia, como qualquer país de terceiro mundo, em poucos momentos sua arte a supera e se firma como movimento inovador. Mas é a riqueza do retrato social de um país singular que a torna particularmente interessante.
O Mapa do Viajante - Carlos Garaicoa
Em seu início, na década de 30, esta arte se mostra quase mística, repleta de simbologias, cores pesadas e escuras. O surreal, o místico e paisagens bucólicas protagonizam telas de pintores como Eduardo Abela e Carlos Enriquez. A tela Lesbianas, de Enriquez, surpreende pela temática, inovadora para a época. Já os personagens de Portocarrero têm corpos grandes e musculosos e sofrem clara influência de Botero. É ainda nesta década que a colonização americana e revoltas populares contra o governo provisório de Céspedes se fazem presente em obras de autores como Marcelo Pogolotti e Aristides Fernández. O homem agora está dissolvido no coletivo e símbolos do comunismo e de resistência são notados em telas como Operários e Camponeses (1933), de Pogolotti, e nas belas aquarelas de Fernández, que retratam o sofrimento e isolamento do povo cubano no período, em telas como Engenho e Manifestação.
Jorge Arche e Victor Manuel retratam o povo pobre do campo e seus passatempos, em telas coloridas. É interessante destacar, a partir de suas obras, a miscigenação contínua do povo cubano, fruto da colonização. O camponês hispânico destes retratos posteriormente se tornará um povo majoritariamente afro-descendente. Os símbolos religiosos, conseqüentemente, também herdarão a cultura africana, a exemplo das telas de Roberto Diago e Wilfredo Lam. A santeria e elementos do candomblé podem ser observados em Virgem da Caridade (1946), de Diago, e em outros elementos da cultura afro, como uma máscara de pássaro, de Lam.
Força de trabalho - Marcelo Pogolotti
A exposição Diez Pintores Concretos, na década de 50, da qual participaram Sandu Darie, Luiz Martinez Pedro e Loló Soldevilla, é um dos momentos mais prementes de esforço de Cuba na tentativa de se igualar à arte européia, como um movimento próprio. Com o advento do abstracionismo, instalações inventivas, geometria, cores fortes e maior diversidade de materiais ganham força, em um período de rompimento com antigos movimentos. Apesar de se contituir em um período de experimentação, mesmo nele já vemos uma grande influência política, a exemplo da tela Homenagem a Fidel (1957), de Soldevilla. Dividida como dois tabuleiros de damas, um branco e outro preto, onde as peças têm diversos tamanhos, apesar de serem todas redondas, vemos a tentativa de se conceituar o então líder revolucionário, com reflexões como igualdade e inversão de valores.
Mas é a partir da revolução de 1959 que se revela o ‘grito’ da arte cubana. Muitos pintores começam a inverter conceitos da arte estadunidense, como a pop art de Andy Warhol. A foto de Marylin Monroe é trocada ironicamente pela do herói da independência nacional, José Marti, em Marti e a estrela (1966), de Raúl Martinez. Já as telas de Rafael Zarza são impactantes, tanto pelo seu tamanho, cores vibrantes e temática agressiva. Em O Grande Fascista (1973), contemplamos um expressionismo exacerbado, em uma tela onde um boi ‘general’ discursa para bois atentos. Suas expressões são caricaturais, de raiva e ódio, e seu fundo vermelho reforça a alusão ao regime. As telas em nanquim da série O amorfo e o desalentador (1968), de Santiago Armada, e a arte pop de Umberto Peña também merecem atenção por sua voracidade. Elas demonstram que o regime nunca foi unânime e discutem o que é a ilha após dez anos da revolução, através de desenhos com dizeres carregados de ironia e metáforas.
René Peña - White things
A mostra tem a limitação de conter poucas esculturas, fotografias e instalações, mas estas poucas demonstram excelente qualidade. Nas duas esculturas, de Raúl Martinez e Antonio Eiriz, o que chama atenção é a diversidade e criatividade de materiais de pouco valor, como colagens, cristais, madeira, masonite e metal. Já a instalação O Mapa do Viajante (2005), de Carlos Garaicoa, é inovadora. Em um grande painel branco, citações de diversos escritores ao redor do mundo, como Jorge Luis Borges, estão distribuídas como países. Cada uma delas descreve uma cidade, sem revelá-la. O contemplador, então, vai tecendo um mapa imaginário conforme vai ‘descobrindo’ a obra. Já a fotografia se revela na série de René Pena, nomeada White Things. Um homem afro-descendente segura objetos brancos em belas fotos em preto e branco. Mais uma crítica velada à colonização e ao racismo.
Mas o que mais resume o espírito da exposição são mesmo seus vídeos. São apenas três: um mostra sucessivamente, em câmara lenta, o corpo baleado do lendário Che Guevara; o segundo é uma imagem preto e branca de duas bandeiras sobrepostas que não param de tremular enquanto uma instalação de som assovia uma música acolhedora e, por fim, um casal de namorados, provavelmente nas ruas de Havana, brigam e se beijam, indefinidamente, apenas vigiados na rua pelo olhar oculto da câmara até que desaparecem de seu campo de visão, unidos, apesar das desavenças visíveis. É o persistente e bravo povo cubano. É o nacionalismo, ideologia e utopia resistentes às adversidades e tão característicos de Cuba. É a ilha. E sua cultura.
Marília Almeida
6 Comments:
Numa analogia entre países e árvores, a formação étnica de um povo seria as raízes; a capacidade de resistir e se adaptar às vicissitudes da história, o tronco; a diversidade de opiniões e caminhos apontados, os galhos; e as manifestações culturais, as flores, com as artes plásticas representadas pelas pétalas e a música pelo perfume. Seguindo com esta analogia, Cuba daria uma bela castanheira, com suas pétalas exóticas e múltiplas, como sua arte, e o seu mítico e único perfume captável à distância, como a deliciosa exalação sonora que encantou o mundo em Buena Vista Social Clube. Cuba não cabe em si e, como o Brasil, a mensagem contida nos sinais emitidos pelo seu povo requer olhos atentos, pele sensível e ouvidos aguçados para captá-la, compreendê-la e armazená-la em um lugar especial do coração. Marília, além de demonstrar possuir tais atributos, conseguiu processá-la sem ferimentos e transmití-la de maneira a ampliar a sua capacidade de nos arrepiar os pêlos do corpo, como já ocorreu a muitos que percorreram pela primeira vez as ruas do centro de Havana.
Marilia, os nossos parentes lá na Bahia gostam de escrever.Eu também gosto de escrever minhas "abobrinhas" e você não está fugindo à regra. Será sem dúvidas uma jornalista de sucesso e fará belíssimas crônicas. Facilidade para escrever você tem e explorar a essência também é uma qualidade que você herdou não sei de quem. Siga em frente, firme e resoluta, estou aqui para lhe aplaudir. Beijos do tio Nelson
Obrigada novamente pelos elogios, Hernandes. Como bem disse a Taís, certa vez, você é nosso maior prestigiador. E cada vez mais me surpreendo com novos leitores que vão surgindo. Aliás, grande leitor e escritor, não é mesmo, tio? Ainda quero ver suas 'abobrinhas'. Você cita nosso sangue baiano e ainda tem dúvidas de onde herdei o dom das letras?
E Cuba é isso mesmo: não há como ficar impassível. E isso não é demagogia e muito menos ideologia política.
Oie.. lendo tua reportagem, deparei-me com o saudoso grupo Buena Vista Social Clube. Documentei a morte de Pio Leyva, o ultimo que ainda existia do grupo, num dos meus blogs.
Agora.. preciso dum favorzinho em particular. Gostaria de saber dos filmes que vc teve participação e mais... cometi um pecado com teu comentário: -senti o eufórico sabor da lisonja.Se precisares de qualquer elemento obscuro para o novo filme, conte comigo. A única coisa que quero.. é assistir e ver na tela, quem sabe... a minha imaginação através da tua.
Boa sorte!
Estive no CCBB de Sampa, por sinal muito charmoso, e pude ver a exposição para a qual fui irresistivelmente convidado pela crítica da Marília. Fiquei muito emocionado, principalmente com as telas do período que antecede a revolução, pelas cores vibrantes e o tema do cotidiano do povo em sua diversidade étnica, a matriz energética do povo cubano. Pude perceber sobretudo como é aguçada a sensibilidade da Marília, e admirar a sua fluência. Mais uma vez, valeu muito.
Hernandes e Mar, muito obrigada pelos comentários e elogios. Foi a primeira vez que tive um feedback da minha crítica e isso é muito bom. Atingi meu objetivo ao mostrar um mundo novo a alguém. E fico ainda mais satisfeita por ter acertado no elogio ao evento. Afinal, em matéria de cultura, a subjetividade reina. E isso é muito bom, pois prova nossa tão rica diversidade.
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