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14.5.06

O submundo paulistano e seu contista

ENTREVISTA*

"São Paulo é a cidade mais fácil do mundo para ser cronista. Vou andando, o assunto agarra meu tornozelo e diz: me usa, me usa", revela o escritor e jornalista Ignácio de Loyola Brandão. Ele carrega consigo um pequeno bloco, onde anota situações que alimentam sua vasta obra, que já soma 27 livros, entre crônicas, contos, romances e infanto-juvenis. É a São Paulo da década de 1960 e seus interessantes e únicos personagens que resgata em seu primeiro livro, “Depois do Sol”, lançado pela Editora Brasiliense, em 1965, e recentemente reeditado pela Global Editora em comemoração aos 40 anos de carreira do autor. A nova edição é particularmente interessante por ter o making off da obra e revelar os personagens que a inspiraram.
Na época, Loyola Brandão começava sua carreira como jornalista no jornal de Samuel Weiner, “Última Hora”, no qual trabalhou por quase dez anos. Morador do centro, a boemia da cidade e seus bares e inferninhos lhe atraíam. Clubinho, na Rua Rego Freitas, boca de luxo que reunia pintores e escritores; o restaurante Gigetto, na rua Nestor Pestana, com seus artistas, diretores e desfile de celebridades; o inferninho Snobar, na Bento Freitas, onde, para fazer um programa, tinha de ser figura carimbada; e Juão, templo da bossa nova, além dos famosos pombais da boca de lixo, são palcos de inspiração para os oito contos que o escritor reúne em “Depois do sol”. A capital é coadjuvante silenciosa ou protagonista, em contos como “São João Mão Única”, retrato de um congestionamento na avenida, e “Aos Sábados Eles Mandam na Praça”, relato do ritual pelo qual passava a Praça Roosevelt, todos os sábados à noite, onde as mais diversas classes sociais e estilos freqüentavam seus cinemas. Loyola Brandão retrata também o mundo da moda, inspirando-se nas pioneiras modelos tupiniquins da Rhodia.
Atualmente, o autor trabalha em seu novo romance, “A altura e a largura do nada”, que, faz questão de enfatizar, é algo sagrado entre suas diversas atividades profissionais. Na entrevista a seguir, ele relembra seu primeiro livro e fala de suas preferências literárias, após 40 anos dedicados à literatura.
“Depois do Sol” retrata uma São Paulo da década de 1960. Restou algo daquele tempo em suas andanças atuais pelo centro da cidade?
Ignácio de Loyola Brandão - Minhas andanças atuais são diferentes daquelas. As que estão no livro são de 40 anos atrás, mundo de outro Loyola mais jovem, menos amadurecido que este. Andanças que falavam da noite, da gente da noite. Aquela noite desapareceu, mudou. Nada restou. Onde havia a boca do lixo, cheia de tipos pitorescos e curiosos, de gente interessante e cheia de alma, hoje é a Cracolândia, com traficantes, bandidos, crianças viciadas, um Brasil lúmpem, miserável, resultado da ausência de uma política social nas últimas décadas. O centro da cidade decaiu, apesar das tentativas de revitalização. A revitalização se vai conseguir fazer em um longo tempo e com um projeto objetivo no qual se deve investir dinheiro. Nem vejo o projeto e muito menos o dinheiro.
Particularmente em “Depois do Sol” é difícil separar sua biografia e a ficção. Sem revelar mais segredos do que os já revelados no making off da obra, qual é o balanço entre ficção e realidade no livro?
ILB - O truque do autor é esse. Inventar dando a sensação de que é a sua vida. Na verdade, minha vida é desinteressante, prosaica, apática. Invento personagens que gostaria de ser, crio situações que gostaria de viver. Lembro-me que Wilson Martins, ao criticar “O Beijo Não Vem da Boca” (romance publicado em 1985), disse: "ah, invejo o personagem Loyola com todas essas mulheres entorno". O Loyola vive com apenas uma mulher entorno, a sua própria, com quem se casou há 20 anos. Minha vida não interessa, talvez minha obra sim. Há uma preocupação muito grande em esmiuçar a biografia do autor para entender sua obra. Cada coisa é uma coisa, são distintas, separadas. Kafka era um modesto funcionário de uma seguradora e vejam o que escreveu.
Snobar, Clubinho, Gigetto...Qual lugar é o mais inesquecível para você?
ILB - Clubinho e Gigetto eram lugares "respeitabilíssimos", de família. O Gigetto era o bar das classes teatral e cinematográfica, mito da noite paulistana. Quanto aos inferninhos, só me lembro com reverência de um, o Holliday, fantástico pelas mulheres lindas.
Como você se interessou pelo tema da moda, retratada em seus primeiros passos no país em “Depois do Sol”?
ILB - A moda aparece como um segmento que me interessou pela curiosidade despertada por esse mundo de vaidades, superficialidades, ambições, carreiras, sonhos, criatividade, loucura. Como escritor, mergulho em tudo o que posso na vida, porque de tudo sai sempre bom material para a literatura.
Em “Depois do Sol”, o golpe militar serve como pano de fundo em um dos contos e em diversos outros livros você o retrata, principalmente em “Zero” (1975). Porém, você revelou que escreveria uma página em branco sobre a situação política atual. Explique esta opção.
ILB - Todos os escritores, de todas as épocas, refletem o momento em que vivem, a sociedade em que crescem, de Shakespeare a Cervantes, Balzac, Tchecov, Stendhal, Gabriel García Márquez, Saramago, e milhares de outros. O escritor é um filtro do seu tempo. Página em branco? Com todos os assuntos que estão aí, como a corrupção, falta de ética, a geléia-geral em que se transformou a ideologia de nossos políticos e governantes, o mensalão, as contas bancárias devassadas, os bancos ganhando milhões, a droga comendo solta, a violência, mortes, medo, assaltos? Página em vermelho, isso sim. E bem recheada.
Como foi o processo de deglutição de uma cidade por um jovem interiorano, tão bem descrita em “Depois do Sol”?
ILB - Sempre tive fascínio pela cidade. Entreguei-me a ela e deixei-me engolir.
Você declarou que não tem angústia para escrever e costuma editar muito seu texto. Como é seu processo de criação? O que te inspira mais: a realidade ou a ficção?
ILB - Uma imagem ou frase me impressiona. Ou uma situação. Ela permanece na mente, vai se ampliando sozinha. Uma hora, passo para o papel. O que farei com isso? Começo a rodear, rodear, a imaginação flui, dados do real se inserem, busco personagens. Sou inspirado pela realidade a minha volta ou pela imaginação solta.
O que viu na literatura que não encontrou no jornalismo?
ILB - Na literatura vi o delírio, o interior dos personagens, o vôo sem limites, sem fronteiras, a exploração de todas as possibilidades.
Você elogiou o filme Capote, de Benett Miller. Qual a sua visão sobre o new journalism? Nunca se sentiu atraído para escrever livros do gênero?
ILB - Acho que se pode fazer jornalismo muito bem feito, com estilo apurado, mas continuará sendo jornalismo. Literatura envolve emoção, sentimentos, imaginação, fantasia.
Você era um garoto apaixonado por cinema que começou a carreira jornalística como crítico cultural. Conte um pouco sobre esta experiência.
ILB - Adorava cinema e descobri que os críticos não pagavam para ver os filmes. Como era pobre, tentei ser crítico em Araraquara e consegui. Com ingresso livre, ia toda a noite ao cinema. Era minha fuga, terapia, loucura, catarse. Eu vivia dentro dos filmes, escrevi na cabeça “A Rosa Púrpura do Cairo” dezenas de anos antes do Woody Allen fazer o filme. Depois, abandonei a crítica, pois vi que não tirava e nem colocava nenhum espectador no cinema. Senti que era uma coisa inútil, vazia.
Resgatando esta experiência, o que é cinema, literatura, música e teatro para você, hoje
ILB - Cinema? Sonho que se foi.
Literatura? Sonho que vivo.
Música? Me dá a atmosfera quando escrevo. Tenho ouvido morto.
Teatro? Um lugar em que começo a penetrar e a descobrir.
Conte um pouco sobre “A altura e a largura do nada”.
ILB - Ele se passa em Araraquara e mistura ficção com realidade, tem dinossauros pelo meio, desertos, sensualidade e excomunhão.
*publicada na Cult Online
Marília Almeida

2 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Em geral, gosto de entrevistas. Quando a entrevista é com alguém de que gosto, o prazer é ainda maior. E quando você sente o prazer do jornalista em fazer as perguntas (e quando há prazer, tesão, as perguntas são pertinentes), aí o ciclo se fecha e você tem um texto saboroso para ler. É o caso dessa entrevista com o Ignácio de Loyola Brandão feita por Marília Almeida, uma jovem repórter que desponta como um potencial talento do jornalismo cultural brasileiro. E ponto-final.
Samir

1:43 PM  
Anonymous Anônimo said...

Tive o primeiro contato com Ignácio de Loyola Brandão aos 13 anos, quando li "O beijo não vem da boca". Na época me seduziram o desafio intelectual de compreender o seu descompromisso com a linearidade cronológica da narrativa, coisa que eu só tinha visto em Jorge Amado até então, e com os sutis mistérios do relacionamento entre adultos, coisa que já conhecia (e gostava) de Nelson Rodrigues (havia lido "O Casamento"). Depois nunca mais li um livro de Loyola. Não por falta de vontade, mas pela sede de conhecer outros e outros autores. Com Marília agora reencontro este escritor marcante na minha vida de leitor. Aliás, Marília Almeida é também marcante na minha vida de internauta... Ótima entrevista. O ArteFato está amadurecendo rapidamente e, neste processo, ganhamos nós, os seus assíduos leitores.

7:38 PM  

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