Além de Márquez: a epopéia de uma utopia
LITERATURA
O livro poderia bem ser uma antípoda de Cem Anos de Solidão, do hermano Gabriel García Marquez, tanto pela qualidade da obra quanto pela abrangência de seu retrato. Enquanto Cem Anos é o clássico latino-americano que marca a narrativa fantástica, que inspirou tantos outros autores do continente, a obra de Llosa marca uma literatura realista, baseada em fatos políticos reais. As duas são completas e marcadas por grande diversidade narrativa. Talvez Conversa na Catedral tenha realmente este intuito, já que Llosa fez uma análise literária de Márquez um ano antes de sua publicação. Llosa já chegou até mesmo a agredir fisicamente Márquez, até então seu amigo, em uma exibição de um filme para jornalistas e intelectuais. Perguntado sobre a razão, Llosa revelou que prefere a deixar para os historiadores, mas muito se cita suas disparatadas visões políticas e conflitos envolvendo mulheres. A partir daí, os dois gigantes hermanos nunca mais se falaram.
Conversa na Catedral retrata a ditadura de Manuel Odría. Deposto em 1956, foi um dos muitos protagonistas de um golpe de Estado no país. Ministro do governo, para se eleger, em 1950, derrubou Bustamante após sua requisição que proibiria o partido aprista no país não ser aceita. Foi então eleito como candidato único após uma rebelião com mortos. Sua repressão à APRA agradou à oligarquia do país, teve apoio popular das classes baixas mas, ao mesmo tempo, restringiu os direitos humanos. Sua ditadura terminou quando o próprio requisitou eleições frente a uma crescente impopularidade.
O livro, escrito entre 1969 e 1972, descreve a influência desta ditadura na vida do jovem Santiago Zavala e o ex-chofer de seu pai, Ambrosio. O livro é uma conversa entre eles, em um reencontro após anos de separação. Conforme relembram conflitos vividos, suas histórias se entrecruzam e dão o dinamismo do livro. Elas também são sobrepostas por pensamentos que a narração vai provocando progressivamente. São estas duas visões, intercaladas a um romance não-linear, com vários sujeitos e um narrador onipresente, que caracterizam o virtuosismo da obra, digno da linguagem cinematográfica. Em 600 páginas é contada cerca de uma década. O mais interessante é que não fica claro o quanto das lembranças são contadas ao outro e a narrativa é sempre rica em detalhes e densa, como um balanço interior de cada personagem.
Santiago é membro de uma família da burguesia peruana e filho de um empresário que faz negócios com o governo, símbolo da oligarquia da época. Ao entrar na faculdade de Direito, seguindo o desejo de seu pai, conhece o comunismo e a atração provocada por uma ideologia. Se deixa envolver por ela, não tanto por seu significado, mas por seu ceticismo e desejo reprimido de se diferenciar de sua família e tudo o que representa. Ele é um eterno insatisfeito e desacreditado de sua pátria, que teima em atingí-lo indiretamente, seja por meio de sua família, trabalho e até mesmo sua vida pessoal. Até que um fato muda o rumo de sua vida e envolve seu pai. A partir daí, como jornalista, a trajetória de Santiago vai se deteriorando, envolta de uma profunda melancolia que reflete e representa a visão de um peruano de classe média e parte da elite intelectual do país. Já Ambrosio e personagens de sua convivência trazem a visão da classe baixa peruana, subjugada pelo governo e massa de manobra para a sua popularidade. Passam fome, são atingidos pelo desemprego e carentes de iniciativas sociais e direitos humanos.
Ao mesmo tempo, Ambrosio se envolve com o governo e mostra, paralelamente, a sua visão, o que acaba por constituir a trinca do livro. Ele também se torna chofer de Cayo Bermúdez, chefe de governo de Odría, e mostra uma ditadura corrupta e caricatural na medida em que é complementada por um envolvimento com o submundo de prostitutas e frivolidades. Bermúdez recebe cada vez mais poderes que excedem seu cargo e acaba por tornar o governo de Odría impopular, devido a suas ações violentas contra manifestações civis e quaisquer inimigos do governo, sejam ele apristas,comunistas ou um levante de empresários e líderes políticos do próprio governo. Llosa coloca Odría em segundo plano e Bermúdez como protagonista talvez pelo livro ter sido feito sob seu governo. Com extremo sarcasmo e metáforas, ele vai desenhando uma crítica veemente à política peruana vigente, da qual, ao final, se tem uma visão desalentadora.
Mario Vargas Llosa talvez seja um dos escritores latino-americanos mais polêmicos pela veemência e contradição de suas atitudes políticas. Ele foi considerado alvo de duas ideologias opostas: a esquerda e a direita. Conversa na Catedral ainda reflete o período em que esteve envolvido com a primeira, até que se candidatou à presidência do Peru em 1985, com um discurso neoliberal. Foi derrotado por Alberto Fujimori, um dos maiores ditadores do país, que buscou refúgio no Japão após saquear e corromper o governo. A partir daí, Llosa passou a criticar duramente Fujimori e chegou até mesmo a acusar o governo brasileiro de Fernando Henrique Cardoso de apoiar a ditadura peruana.
Mas à parte a personalidade e ações do autor e mais do que a velha discussão esquerda e direita, que não faz mais sentido no momento atual, Santiago Zavala pode ser considerado um solitário na luta por direitos humanos e liberdade de expressão, engolido pelo mundo corrompido e vilipendiado por toda sorte de caricaturas de tempos anteriores e futuros. Mais resumidamente, ele luta pela democracia, assim como seu autor, o que equivale a ser um utópico. O seu repentino afastamento da política e sua ação de não ler as notícias que a envolvem até mesmo do próprio jornal onde trabalha o fazem um acomodado na visão de muitos, mas de vítima de um sistema eternizado na visão de outros tantos, talvez mais conscientes e realistas.
Quando o Peru se fodeu? Em tempos de uma eleição conturbada no país, a ser realizada no dia 4 de junho, esta pergunta não poderia ser mais pertinente. Vistoriada pela Organização dos Estados Americano devido a suspeitas de fraude em seu 1º turno, que deu o favoritismo à Alan García, ex-presidente do país em um governo involto por denúncias de corrupção entre 1985 e 1990, ela é disputada pelo tradicional Partido Aprista Peruano de Alan e o nacionalista União pelo Peru, de Ollanta Humala. Apesar de seu caráter atual, ela foi indagada em 1972 pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa. É assim que o protagonista de sua obra-prima, Conversa na Catedral, começa sua epopéia utópica.
O livro poderia bem ser uma antípoda de Cem Anos de Solidão, do hermano Gabriel García Marquez, tanto pela qualidade da obra quanto pela abrangência de seu retrato. Enquanto Cem Anos é o clássico latino-americano que marca a narrativa fantástica, que inspirou tantos outros autores do continente, a obra de Llosa marca uma literatura realista, baseada em fatos políticos reais. As duas são completas e marcadas por grande diversidade narrativa. Talvez Conversa na Catedral tenha realmente este intuito, já que Llosa fez uma análise literária de Márquez um ano antes de sua publicação. Llosa já chegou até mesmo a agredir fisicamente Márquez, até então seu amigo, em uma exibição de um filme para jornalistas e intelectuais. Perguntado sobre a razão, Llosa revelou que prefere a deixar para os historiadores, mas muito se cita suas disparatadas visões políticas e conflitos envolvendo mulheres. A partir daí, os dois gigantes hermanos nunca mais se falaram.
Conversa na Catedral retrata a ditadura de Manuel Odría. Deposto em 1956, foi um dos muitos protagonistas de um golpe de Estado no país. Ministro do governo, para se eleger, em 1950, derrubou Bustamante após sua requisição que proibiria o partido aprista no país não ser aceita. Foi então eleito como candidato único após uma rebelião com mortos. Sua repressão à APRA agradou à oligarquia do país, teve apoio popular das classes baixas mas, ao mesmo tempo, restringiu os direitos humanos. Sua ditadura terminou quando o próprio requisitou eleições frente a uma crescente impopularidade.
O livro, escrito entre 1969 e 1972, descreve a influência desta ditadura na vida do jovem Santiago Zavala e o ex-chofer de seu pai, Ambrosio. O livro é uma conversa entre eles, em um reencontro após anos de separação. Conforme relembram conflitos vividos, suas histórias se entrecruzam e dão o dinamismo do livro. Elas também são sobrepostas por pensamentos que a narração vai provocando progressivamente. São estas duas visões, intercaladas a um romance não-linear, com vários sujeitos e um narrador onipresente, que caracterizam o virtuosismo da obra, digno da linguagem cinematográfica. Em 600 páginas é contada cerca de uma década. O mais interessante é que não fica claro o quanto das lembranças são contadas ao outro e a narrativa é sempre rica em detalhes e densa, como um balanço interior de cada personagem.
Santiago é membro de uma família da burguesia peruana e filho de um empresário que faz negócios com o governo, símbolo da oligarquia da época. Ao entrar na faculdade de Direito, seguindo o desejo de seu pai, conhece o comunismo e a atração provocada por uma ideologia. Se deixa envolver por ela, não tanto por seu significado, mas por seu ceticismo e desejo reprimido de se diferenciar de sua família e tudo o que representa. Ele é um eterno insatisfeito e desacreditado de sua pátria, que teima em atingí-lo indiretamente, seja por meio de sua família, trabalho e até mesmo sua vida pessoal. Até que um fato muda o rumo de sua vida e envolve seu pai. A partir daí, como jornalista, a trajetória de Santiago vai se deteriorando, envolta de uma profunda melancolia que reflete e representa a visão de um peruano de classe média e parte da elite intelectual do país. Já Ambrosio e personagens de sua convivência trazem a visão da classe baixa peruana, subjugada pelo governo e massa de manobra para a sua popularidade. Passam fome, são atingidos pelo desemprego e carentes de iniciativas sociais e direitos humanos.
Ao mesmo tempo, Ambrosio se envolve com o governo e mostra, paralelamente, a sua visão, o que acaba por constituir a trinca do livro. Ele também se torna chofer de Cayo Bermúdez, chefe de governo de Odría, e mostra uma ditadura corrupta e caricatural na medida em que é complementada por um envolvimento com o submundo de prostitutas e frivolidades. Bermúdez recebe cada vez mais poderes que excedem seu cargo e acaba por tornar o governo de Odría impopular, devido a suas ações violentas contra manifestações civis e quaisquer inimigos do governo, sejam ele apristas,comunistas ou um levante de empresários e líderes políticos do próprio governo. Llosa coloca Odría em segundo plano e Bermúdez como protagonista talvez pelo livro ter sido feito sob seu governo. Com extremo sarcasmo e metáforas, ele vai desenhando uma crítica veemente à política peruana vigente, da qual, ao final, se tem uma visão desalentadora.
Mario Vargas Llosa talvez seja um dos escritores latino-americanos mais polêmicos pela veemência e contradição de suas atitudes políticas. Ele foi considerado alvo de duas ideologias opostas: a esquerda e a direita. Conversa na Catedral ainda reflete o período em que esteve envolvido com a primeira, até que se candidatou à presidência do Peru em 1985, com um discurso neoliberal. Foi derrotado por Alberto Fujimori, um dos maiores ditadores do país, que buscou refúgio no Japão após saquear e corromper o governo. A partir daí, Llosa passou a criticar duramente Fujimori e chegou até mesmo a acusar o governo brasileiro de Fernando Henrique Cardoso de apoiar a ditadura peruana.
Mas à parte a personalidade e ações do autor e mais do que a velha discussão esquerda e direita, que não faz mais sentido no momento atual, Santiago Zavala pode ser considerado um solitário na luta por direitos humanos e liberdade de expressão, engolido pelo mundo corrompido e vilipendiado por toda sorte de caricaturas de tempos anteriores e futuros. Mais resumidamente, ele luta pela democracia, assim como seu autor, o que equivale a ser um utópico. O seu repentino afastamento da política e sua ação de não ler as notícias que a envolvem até mesmo do próprio jornal onde trabalha o fazem um acomodado na visão de muitos, mas de vítima de um sistema eternizado na visão de outros tantos, talvez mais conscientes e realistas.
Marília Almeida