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28.5.06

Além de Márquez: a epopéia de uma utopia

LITERATURA

Quando o Peru se fodeu? Em tempos de uma eleição conturbada no país, a ser realizada no dia 4 de junho, esta pergunta não poderia ser mais pertinente. Vistoriada pela Organização dos Estados Americano devido a suspeitas de fraude em seu 1º turno, que deu o favoritismo à Alan García, ex-presidente do país em um governo involto por denúncias de corrupção entre 1985 e 1990, ela é disputada pelo tradicional Partido Aprista Peruano de Alan e o nacionalista União pelo Peru, de Ollanta Humala. Apesar de seu caráter atual, ela foi indagada em 1972 pelo escritor peruano Mario Vargas Llosa. É assim que o protagonista de sua obra-prima, Conversa na Catedral, começa sua epopéia utópica.

O livro poderia bem ser uma antípoda de Cem Anos de Solidão, do hermano Gabriel García Marquez, tanto pela qualidade da obra quanto pela abrangência de seu retrato. Enquanto Cem Anos é o clássico latino-americano que marca a narrativa fantástica, que inspirou tantos outros autores do continente, a obra de Llosa marca uma literatura realista, baseada em fatos políticos reais. As duas são completas e marcadas por grande diversidade narrativa. Talvez Conversa na Catedral tenha realmente este intuito, já que Llosa fez uma análise literária de Márquez um ano antes de sua publicação. Llosa já chegou até mesmo a agredir fisicamente Márquez, até então seu amigo, em uma exibição de um filme para jornalistas e intelectuais. Perguntado sobre a razão, Llosa revelou que prefere a deixar para os historiadores, mas muito se cita suas disparatadas visões políticas e conflitos envolvendo mulheres. A partir daí, os dois gigantes hermanos nunca mais se falaram.

Conversa na Catedral retrata a ditadura de Manuel Odría. Deposto em 1956, foi um dos muitos protagonistas de um golpe de Estado no país. Ministro do governo, para se eleger, em 1950, derrubou Bustamante após sua requisição que proibiria o partido aprista no país não ser aceita. Foi então eleito como candidato único após uma rebelião com mortos. Sua repressão à APRA agradou à oligarquia do país, teve apoio popular das classes baixas mas, ao mesmo tempo, restringiu os direitos humanos. Sua ditadura terminou quando o próprio requisitou eleições frente a uma crescente impopularidade.

O livro, escrito entre 1969 e 1972, descreve a influência desta ditadura na vida do jovem Santiago Zavala e o ex-chofer de seu pai, Ambrosio. O livro é uma conversa entre eles, em um reencontro após anos de separação. Conforme relembram conflitos vividos, suas histórias se entrecruzam e dão o dinamismo do livro. Elas também são sobrepostas por pensamentos que a narração vai provocando progressivamente. São estas duas visões, intercaladas a um romance não-linear, com vários sujeitos e um narrador onipresente, que caracterizam o virtuosismo da obra, digno da linguagem cinematográfica. Em 600 páginas é contada cerca de uma década. O mais interessante é que não fica claro o quanto das lembranças são contadas ao outro e a narrativa é sempre rica em detalhes e densa, como um balanço interior de cada personagem.

Santiago é membro de uma família da burguesia peruana e filho de um empresário que faz negócios com o governo, símbolo da oligarquia da época. Ao entrar na faculdade de Direito, seguindo o desejo de seu pai, conhece o comunismo e a atração provocada por uma ideologia. Se deixa envolver por ela, não tanto por seu significado, mas por seu ceticismo e desejo reprimido de se diferenciar de sua família e tudo o que representa. Ele é um eterno insatisfeito e desacreditado de sua pátria, que teima em atingí-lo indiretamente, seja por meio de sua família, trabalho e até mesmo sua vida pessoal. Até que um fato muda o rumo de sua vida e envolve seu pai. A partir daí, como jornalista, a trajetória de Santiago vai se deteriorando, envolta de uma profunda melancolia que reflete e representa a visão de um peruano de classe média e parte da elite intelectual do país. Já Ambrosio e personagens de sua convivência trazem a visão da classe baixa peruana, subjugada pelo governo e massa de manobra para a sua popularidade. Passam fome, são atingidos pelo desemprego e carentes de iniciativas sociais e direitos humanos.

Ao mesmo tempo, Ambrosio se envolve com o governo e mostra, paralelamente, a sua visão, o que acaba por constituir a trinca do livro. Ele também se torna chofer de Cayo Bermúdez, chefe de governo de Odría, e mostra uma ditadura corrupta e caricatural na medida em que é complementada por um envolvimento com o submundo de prostitutas e frivolidades. Bermúdez recebe cada vez mais poderes que excedem seu cargo e acaba por tornar o governo de Odría impopular, devido a suas ações violentas contra manifestações civis e quaisquer inimigos do governo, sejam ele apristas,comunistas ou um levante de empresários e líderes políticos do próprio governo. Llosa coloca Odría em segundo plano e Bermúdez como protagonista talvez pelo livro ter sido feito sob seu governo. Com extremo sarcasmo e metáforas, ele vai desenhando uma crítica veemente à política peruana vigente, da qual, ao final, se tem uma visão desalentadora.

Mario Vargas Llosa talvez seja um dos escritores latino-americanos mais polêmicos pela veemência e contradição de suas atitudes políticas. Ele foi considerado alvo de duas ideologias opostas: a esquerda e a direita. Conversa na Catedral ainda reflete o período em que esteve envolvido com a primeira, até que se candidatou à presidência do Peru em 1985, com um discurso neoliberal. Foi derrotado por Alberto Fujimori, um dos maiores ditadores do país, que buscou refúgio no Japão após saquear e corromper o governo. A partir daí, Llosa passou a criticar duramente Fujimori e chegou até mesmo a acusar o governo brasileiro de Fernando Henrique Cardoso de apoiar a ditadura peruana.

Mas à parte a personalidade e ações do autor e mais do que a velha discussão esquerda e direita, que não faz mais sentido no momento atual, Santiago Zavala pode ser considerado um solitário na luta por direitos humanos e liberdade de expressão, engolido pelo mundo corrompido e vilipendiado por toda sorte de caricaturas de tempos anteriores e futuros. Mais resumidamente, ele luta pela democracia, assim como seu autor, o que equivale a ser um utópico. O seu repentino afastamento da política e sua ação de não ler as notícias que a envolvem até mesmo do próprio jornal onde trabalha o fazem um acomodado na visão de muitos, mas de vítima de um sistema eternizado na visão de outros tantos, talvez mais conscientes e realistas.
Marília Almeida

14.5.06

O submundo paulistano e seu contista

ENTREVISTA*

"São Paulo é a cidade mais fácil do mundo para ser cronista. Vou andando, o assunto agarra meu tornozelo e diz: me usa, me usa", revela o escritor e jornalista Ignácio de Loyola Brandão. Ele carrega consigo um pequeno bloco, onde anota situações que alimentam sua vasta obra, que já soma 27 livros, entre crônicas, contos, romances e infanto-juvenis. É a São Paulo da década de 1960 e seus interessantes e únicos personagens que resgata em seu primeiro livro, “Depois do Sol”, lançado pela Editora Brasiliense, em 1965, e recentemente reeditado pela Global Editora em comemoração aos 40 anos de carreira do autor. A nova edição é particularmente interessante por ter o making off da obra e revelar os personagens que a inspiraram.
Na época, Loyola Brandão começava sua carreira como jornalista no jornal de Samuel Weiner, “Última Hora”, no qual trabalhou por quase dez anos. Morador do centro, a boemia da cidade e seus bares e inferninhos lhe atraíam. Clubinho, na Rua Rego Freitas, boca de luxo que reunia pintores e escritores; o restaurante Gigetto, na rua Nestor Pestana, com seus artistas, diretores e desfile de celebridades; o inferninho Snobar, na Bento Freitas, onde, para fazer um programa, tinha de ser figura carimbada; e Juão, templo da bossa nova, além dos famosos pombais da boca de lixo, são palcos de inspiração para os oito contos que o escritor reúne em “Depois do sol”. A capital é coadjuvante silenciosa ou protagonista, em contos como “São João Mão Única”, retrato de um congestionamento na avenida, e “Aos Sábados Eles Mandam na Praça”, relato do ritual pelo qual passava a Praça Roosevelt, todos os sábados à noite, onde as mais diversas classes sociais e estilos freqüentavam seus cinemas. Loyola Brandão retrata também o mundo da moda, inspirando-se nas pioneiras modelos tupiniquins da Rhodia.
Atualmente, o autor trabalha em seu novo romance, “A altura e a largura do nada”, que, faz questão de enfatizar, é algo sagrado entre suas diversas atividades profissionais. Na entrevista a seguir, ele relembra seu primeiro livro e fala de suas preferências literárias, após 40 anos dedicados à literatura.
“Depois do Sol” retrata uma São Paulo da década de 1960. Restou algo daquele tempo em suas andanças atuais pelo centro da cidade?
Ignácio de Loyola Brandão - Minhas andanças atuais são diferentes daquelas. As que estão no livro são de 40 anos atrás, mundo de outro Loyola mais jovem, menos amadurecido que este. Andanças que falavam da noite, da gente da noite. Aquela noite desapareceu, mudou. Nada restou. Onde havia a boca do lixo, cheia de tipos pitorescos e curiosos, de gente interessante e cheia de alma, hoje é a Cracolândia, com traficantes, bandidos, crianças viciadas, um Brasil lúmpem, miserável, resultado da ausência de uma política social nas últimas décadas. O centro da cidade decaiu, apesar das tentativas de revitalização. A revitalização se vai conseguir fazer em um longo tempo e com um projeto objetivo no qual se deve investir dinheiro. Nem vejo o projeto e muito menos o dinheiro.
Particularmente em “Depois do Sol” é difícil separar sua biografia e a ficção. Sem revelar mais segredos do que os já revelados no making off da obra, qual é o balanço entre ficção e realidade no livro?
ILB - O truque do autor é esse. Inventar dando a sensação de que é a sua vida. Na verdade, minha vida é desinteressante, prosaica, apática. Invento personagens que gostaria de ser, crio situações que gostaria de viver. Lembro-me que Wilson Martins, ao criticar “O Beijo Não Vem da Boca” (romance publicado em 1985), disse: "ah, invejo o personagem Loyola com todas essas mulheres entorno". O Loyola vive com apenas uma mulher entorno, a sua própria, com quem se casou há 20 anos. Minha vida não interessa, talvez minha obra sim. Há uma preocupação muito grande em esmiuçar a biografia do autor para entender sua obra. Cada coisa é uma coisa, são distintas, separadas. Kafka era um modesto funcionário de uma seguradora e vejam o que escreveu.
Snobar, Clubinho, Gigetto...Qual lugar é o mais inesquecível para você?
ILB - Clubinho e Gigetto eram lugares "respeitabilíssimos", de família. O Gigetto era o bar das classes teatral e cinematográfica, mito da noite paulistana. Quanto aos inferninhos, só me lembro com reverência de um, o Holliday, fantástico pelas mulheres lindas.
Como você se interessou pelo tema da moda, retratada em seus primeiros passos no país em “Depois do Sol”?
ILB - A moda aparece como um segmento que me interessou pela curiosidade despertada por esse mundo de vaidades, superficialidades, ambições, carreiras, sonhos, criatividade, loucura. Como escritor, mergulho em tudo o que posso na vida, porque de tudo sai sempre bom material para a literatura.
Em “Depois do Sol”, o golpe militar serve como pano de fundo em um dos contos e em diversos outros livros você o retrata, principalmente em “Zero” (1975). Porém, você revelou que escreveria uma página em branco sobre a situação política atual. Explique esta opção.
ILB - Todos os escritores, de todas as épocas, refletem o momento em que vivem, a sociedade em que crescem, de Shakespeare a Cervantes, Balzac, Tchecov, Stendhal, Gabriel García Márquez, Saramago, e milhares de outros. O escritor é um filtro do seu tempo. Página em branco? Com todos os assuntos que estão aí, como a corrupção, falta de ética, a geléia-geral em que se transformou a ideologia de nossos políticos e governantes, o mensalão, as contas bancárias devassadas, os bancos ganhando milhões, a droga comendo solta, a violência, mortes, medo, assaltos? Página em vermelho, isso sim. E bem recheada.
Como foi o processo de deglutição de uma cidade por um jovem interiorano, tão bem descrita em “Depois do Sol”?
ILB - Sempre tive fascínio pela cidade. Entreguei-me a ela e deixei-me engolir.
Você declarou que não tem angústia para escrever e costuma editar muito seu texto. Como é seu processo de criação? O que te inspira mais: a realidade ou a ficção?
ILB - Uma imagem ou frase me impressiona. Ou uma situação. Ela permanece na mente, vai se ampliando sozinha. Uma hora, passo para o papel. O que farei com isso? Começo a rodear, rodear, a imaginação flui, dados do real se inserem, busco personagens. Sou inspirado pela realidade a minha volta ou pela imaginação solta.
O que viu na literatura que não encontrou no jornalismo?
ILB - Na literatura vi o delírio, o interior dos personagens, o vôo sem limites, sem fronteiras, a exploração de todas as possibilidades.
Você elogiou o filme Capote, de Benett Miller. Qual a sua visão sobre o new journalism? Nunca se sentiu atraído para escrever livros do gênero?
ILB - Acho que se pode fazer jornalismo muito bem feito, com estilo apurado, mas continuará sendo jornalismo. Literatura envolve emoção, sentimentos, imaginação, fantasia.
Você era um garoto apaixonado por cinema que começou a carreira jornalística como crítico cultural. Conte um pouco sobre esta experiência.
ILB - Adorava cinema e descobri que os críticos não pagavam para ver os filmes. Como era pobre, tentei ser crítico em Araraquara e consegui. Com ingresso livre, ia toda a noite ao cinema. Era minha fuga, terapia, loucura, catarse. Eu vivia dentro dos filmes, escrevi na cabeça “A Rosa Púrpura do Cairo” dezenas de anos antes do Woody Allen fazer o filme. Depois, abandonei a crítica, pois vi que não tirava e nem colocava nenhum espectador no cinema. Senti que era uma coisa inútil, vazia.
Resgatando esta experiência, o que é cinema, literatura, música e teatro para você, hoje
ILB - Cinema? Sonho que se foi.
Literatura? Sonho que vivo.
Música? Me dá a atmosfera quando escrevo. Tenho ouvido morto.
Teatro? Um lugar em que começo a penetrar e a descobrir.
Conte um pouco sobre “A altura e a largura do nada”.
ILB - Ele se passa em Araraquara e mistura ficção com realidade, tem dinossauros pelo meio, desertos, sensualidade e excomunhão.
*publicada na Cult Online
Marília Almeida

8.5.06

Romance policial tropical

CINEMA*
Em meio aos filmes brasileiros atualmente em cartaz no circuito nacional, como Arido Movie e Tapete Vermelho, um filme parece ganhar fôlego e respirar outros ares. Ao contrário dos citados, que exploram a já conhecida fórmula do cinema tupiniquim, que se constitui em retratar o ambiente nordestino e caipira e seus costumes, mais bem sucedida em Central do Brasil e Dois Filhos de Francisco, este faz coro com filmes que se inspiram na ficção e adaptaram obras literárias nacionais, como Dom, adaptado da obra de Machado de Assis.
Após Dois Perdidos em uma Noite Suja, filme que entrou e saiu do circuito sem grandes alardes, protagonizado por Débora Fallabella e Roberto Bomtempo, o diretor José Joffily segue com sua própria receita: adaptar obras que remetem ao submundo e soam extremamente urbanas e modernas. Este é o caso de Dois Perdidos, obra-prima do dramaturgo Plínio Marcos, e, agora, Achados e Perdidos, adaptação do romance policial de Luiz Alfredo García-Roza. Mas esta fórmula, apesar de única e inovadora, não fica livre de críticas. Na adaptação de Dois Perdidos, Joffily teve a concorrência de peso de uma anterior adaptação da obra para o cinema, datada de 1970, dirigido por Braz Chediak (Navalha na Carne), extremamente fiel à obra e contundente. Além disso, a sua troca do personagem masculino da dupla de protagonistas por uma mulher não convenceu e dá a uma história originalmente cheia de ódio entre dois operários que vivem juntos e são separados por um crime banal um ar de romance mal resolvido. A troca de ambiente, de um Brasil decadente para a vida de imigrantes nos Estados Unidos, soa forçada e esvazia a crítica social original.
Agora, Joffily acerta mais ao trazer um escritor moderno que foi na contramão da literatura nacional, o que permitiu ao diretor ir também na contramão do cinema nacional. Luiz Alfredo García-Roza é um escritor best-seller carioca com uma curiosa formação: psicanalista formado em psicologia e filosofia. Ele, apesar do nome desconhecido, já vendeu 90 mil exemplares de seus romances policiais no país e os lançou nos Estados Unidos, Grécia, Espanha Portugal e França. Para ele, a literatura policial diz muito sobre a morte e a sexualidade, as questões mais intensas da filosofia e psicanálise. Foi este o gancho que o permitiu se aproximar com mais desenvoltura deste tipo de literatura. Seu personagem principal, o delegado Espinosa, é uma espécie de Sherlock Holmes, de Conan Doyle, uma das inspirações do autor. Ele permeia todos os seus livros e, ao invés de um detetive glamouroso, é o titular da 12º DP de Copacabana e observador de uma estrutura corrompida, com a qual lida diariamente.
A exemplo de Dois Perdidos em Uma Noite Suja, o diretor e o roteirista Paulo Halm também fizeram alterações nos personagens. Acabaram por colocar no lugar de Espinosa um delegado já aposentado, mas mantiveram suas características básicas, como a humildade, lealdade e ética (mesmo que ceda a algumas corrupções, afinal, é humano) que o difere dos funcionários que servem à polícia. O filme é composto, basicamente, de um trio que constitui, de certo modo, um triângulo amoroso: além do delegado Vieira, vivido por Antonio Fagundes, estão a prostituta Magali, personagem de Zezé Polessa; e a jovem que segue os passos de Magali, Flor, que marca a estréia no cinema da modelo Juliana Knust. Vieira é impelido a descobrir o misterioso assasinato de Magali, com quem pretendia se casar, ao mesmo tempo em que é envolvido pelo reaparecimento de um passado que o pode condenar. O elenco experimentado, ao lado de uma estreante, dá o tom do clima do filme. Juliana se sai bem ao representar o cinismo de sua personagem, mas o papel é demasiado pesado para sua estréia. Ele envolve uma personagem chave da trama, extremamente ambígua, o que faz, por vezes, Juliana derrapar e confundir os espectadores.
O enredo do filme pode, aparentemente, soar um tanto previsível. Mas esta leitura é errônea se notarmos que todos os personagens são ambíguos e nenhum se configura em um personagem raso, a exemplo de um assassino frio e calculista. Não há o lado do 'bem' e o lado do 'mal'. Além do trio principal, o ex-policial e amigo de Vieira, que se torna um político corrupto, e a prostituta decadente tomada pelas drogas são pessoas que respiram o ar humano que a fonte onde o autor bebe, a psicanálise, explica. Isto acaba por manter a trama suspensa e ser eficaz em seu efeito de produzir uma sensação de revelação conforme se desenrola, indo do passado para o presente, voltando a este e, algumas vezes, assumindo tons confessionais e de memórias. E, realmente, o que vemos é mais uma história investigativa, permeada por sentimentos e emoções conflitantes, do que o lugar comum da violência gratuita carioca, que o autor é veemente ao afirmar que não o inspira, mas serve apenas como pano de fundo para suas histórias.
Parece que, desta vez, o cinema brasileiro desponta mais uma vez para longe dos lugares comuns de onde tenta, atualmente, se livrar de diversas formas, inclusive incorporando, com sucesso, a linguagem teatral, em filmes como A Máquina. Parece que está conseguindo e, nesta busca, não perde suas características culturais. E não o poderia. Nenhum cinema pode.
Marília Almeida
*publicada no Digestivo Cultural
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