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27.3.06

Cinema-teatro, com jeitinho brasileiro

CINEMA
A temática pode parecer batida. É outra história ambientada em nossas terras áridas, mais precisamente em Nordestina, cidade do sertão baiano, e que retrata seu povo e costumes. Também é outra história de amor, assim como Lisbela e o Prisioneiro. Mas, mais do que um retrato da pobreza ou muro de lamentações, o filme consegue edificar um roteiro extremamente inventivo, que acaba por desmanchar os aparentes clichês iniciais. A Máquina, filme de estréia do diretor pernambucano João Falcão e baseado no livro de sua mulher, Adriana Falcão, é quase um thriller, que prende, encanta e surpreende.

Ele é a história de Antônio de Dona Nazaré (interpretado pelo sobrinho do diretor, Gustavo Falcão) que, devido a fenômenos sobrenaturais, é nomeado ‘filho do tempo’. Em uma cidade esquecida no mapa do Brasil, Antônio vê seus 12 irmãos mais velhos partirem em busca de horizontes, mas a paixão pela bela Karina (Mariana Ximenes), que sonha em ser atriz e fugir da cidade ao completar 18 anos, o mantém pregado à sua raiz. Na tentativa desesperada de trazer o mundo para sua amada, ao invés de deixá-la perseguí-lo, Antônio declara, em um programa sensacionalista na TV, que pode provar que tem o poder de se transportar pelo tempo para ver o prazo de validade do mundo onde vive. Caso não o consiga, oferecerá sua vida. O diretor assume que gosta de trabalhar com pessoas conhecidas, seja de sua família ou de trabalhos anteriores, como os atores Wagner Moura e Lázaro Ramos. E acerta na escolha.

Logo no começo, a voz de Paulo Autran, narrando a história, dramaticamente e de maneira poética, surge na tela. É impossível não pensar na linguagem teatral que tanto caracterizou o ator, que usualmente não faz cinema, e o resto do filme confirma a tese, seja pela fala versada e cantada dos personagens, o cenário improvisado de estúdio ou trilha sonora que interage com a trama, seja em um show no baile à fantasia até em clip na TV. A Máquina, afinal, é a refilmagem de um livro que virou peça de teatro, mas não se basta neste conceito. Falcão vai além ao fazer a incrível junção desta linguagem com a fotografia cinematográfica, que a recorta e enche de beleza. Profundidades, ângulos ousados, iluminações diversas e dinamismo de videoclip. Tudo é utilizado para que a peça ganhe novos contornos, inclusive a utilização concomitante do passado, presente e futuro.

Ganhador de prêmios como melhor filme de ficção, trilha sonora, atriz e roteiro no I FestCine Goiânia, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura da região; e melhor filme de ficção eleito por júri popular do Festival do Rio, o filme participou de mostras competitivas como Premiére Brasil, Mostra internacional de Cinema de São Paulo e Festival de Tiradentes, em Minas Gerais. Sua produtora, a Diler Trindade & Associados, tem como acionista majoritário o empresário Diler Trindade, que, segundo a revista americana Vanity Fair, é um dos dez produtores mais promissores do mundo. Produtora que contabiliza mais de 24 longas-metragens lançados, assistidos por 24 milhões de espectadores, A Máquina é o primeiro em busca do cinema arte, após produzir infantis campeões de bilheteria, protagonizados por Xuxa e outros apresentadores globais. Diler acredita que o Brasil tem desprezo pelo cinema popular, ao contrário dele, que gosta tanto deste cinema, que dá o nome de mortadela, como do cinema caviar. Filme poético, filosófico e inovador que, ao mesmo tempo, entretém com as emoções conhecidas de uma história de amor e fantasia, A máquina consegue ter um sabor raro: meio mortadela, meio caviar.

Marília Almeida

21.3.06

Quando os gatos são pardos

LITERATURA

“São Paulo é a cidade mais fácil do mundo para ser cronista. Vou andando, o assunto agarra meu tornozelo e diz: me usa, me usa”. É o que revelou Ignácio de Loyola Brandão, considerado o cronista da capital, apesar de sua origem interiorana, em um dos debates da Bienal do Livro de São Paulo. Ele carrega consigo um pequeno bloco, onde anota situações que alimentam sua vasta obra, que já soma 27 livros, entre crônicas, contos, romances e infanto-juvenis. “Inspiração é observação. Olhar para o olho das pessoas, o interior, minha cidade, por onde ando, escutar e ouvir as pessoas”.

É a São Paulo da década de 60, seus interessantes e únicos personagens, que surgem sempre quando o sol se põe, que resgata em seu primeiro livro, Depois do Sol, primeiramente lançado pela Brasiliense, em 1965, e recentemente reeditado pela Global Editora, incluindo making off e personagens que o inspiraram, quando o autor completou 40 anos de carreira. Na época, Ignácio começava sua carreira como jornalista no jornal getulista de Samuel Weiner, o Última Hora, onde trabalhou por quase dez anos. Morador do centro da cidade, fazia parte da boemia da cidade. Toda noite fazia via-sacra em boates, bares e inferninhos com seus colegas de redação.
Clubinho, na Rua Rego Freitas, boca de luxo que reunia pintores, escritores e outras figuras notívagas; o restaurante Gigetto, na rua Nestor Pestana, com seus artistas, diretores e desfile de celebridades; o pessoal do Teatro Oficina; o inferninho Snobar, na Bento Freitas, onde, para fazer um programa, tinha que ser figura carimbada; Juão, templo da bossa nova e os pombais da boca de lixo são palco de inspiração de Loyola para os oito contos que reúne nesta obra. A capital é, por ora, coadjuvante silenciosa ou protagonista, em contos como São João Mão Única, retrato de um congestionamento na avenida, na época, e Aos Sábados Eles Mandam na Praça, o ritual diário pelo qual passava a Praça Roosevelt, aos sábados, onde as mais diversas classes sociais e estilos freqüentavam seus cinemas, à noite.
Mas, mais do que uma cidade já caótica, os contos retratam as experiências pessoais de seu autor e personagens inspirados em pessoas que se relacionou. Loyola fala abertamente do baixo salário que ganhava na época, o glamour da carreira, como burlava necessidades financeiras para se divertir, sua doença e visão sobre o golpe militar, mostrando uma juventude intensa, retratada com primor em Retrato do Jovem Brigador, inspirado em um colega de redação.
Além disso, havia a moda, que surgia na cidade com as modelos da Rhodia e era o sonho de consumo de meninas do subúrbio, desde a prostituta do inferninho até a menina de família. Ascensão ao Mundo de Annuska foi inspirado na modelo Giedre Valeika, na época grande manequim da Rhodia. Delicioso, lembra Bonequinha de Luxo, de Truman Capote. Ele, juntamente com A menina que chupava chupeta, que mostra a visão da prostituta sobre a ascensão na vida, se entrecruzam. São duas histórias de amor, dois mundos opostos (ou não), duas personagens bem elaboradas. Retratos crus e reveladores.

Plagiando os ousados layouts que promoveram o livro, criados por amigos do autor quando ainda não havia tal propaganda e muitos donos de livrarias as recusaram, antes de falar mal de Loyola, leia este livro. Depois, fale mal com conhecimento de causa. Enquanto a gente dorme, acontecem coisas incríveis na cidade. Loyola conta tudo, neste livro.
Marília Almeida

14.3.06

As facetas de Clooney

CINEMA

FILMES DO OSCAR III
A maré está boa para o ex-galã da série de TV Plantão Médico, que nunca havia participado do Oscar. George Clooney fez uma boa estréia na festa de gala de Hollywood como diretor de Boa Noite Boa Sorte (Good night, and good luck). Apesar de não ter levado estatuetas para casa, apenas a de melhor ator coadjuvante por outro filme, Syriana, que cujo papel, a propósito, exigiu muito de si (ele engordou 14 quilos e se feriu gravemente ao filmar uma cena, chegando a dizer que foi o melhor e pior papel de sua vida), seu filme, onde, além de diretor, foi ator coadjuvante e co-roteirista, foi indicado em seis categorias: Melhor Filme, Melhor diretor, Melhor Ator, Melhor Direção de Arte, Melhor Fotografia e Roteiro Original. Balanço muito bom para um estreante no mais alto mundo de Hollywood.

Clooney chamou a atenção, principalmente, por ter se tornado um ator e diretor politizado, com preferência por histórias com fundo histórico e político. Clooney é reconhecidamente anti-Bush e, após chamar atenção para a indústria do petróleo, o terrorismo e a decadência da CIA em Syriana, em Boa Noite, boa sorte dá uma cutucada na mídia de massa de seu país e na política americana no Oriente Médio, parecendo incrivelmente atual. Ele resgata a carreira do âncora de TV da rede CBS, Edward Murrow (David Strathairn), principalmente seu embate, na década de 50, com o senador Joseph McCarthy, que empregava sua caça aos comunistas no país. Ele se passa em uma TV recém implantada nos Estados Unidos, mas que já mostrava sua grande influência e poder.


Originalmente concebido para ser um especial para a rede CBS, o filme é impecável. Com um orçamento de US$7,5 milhões, não tem pretensões e se passa, praticamente, em um único ambiente: a rede de TV CBS. Clooney acerta em usar de todos artifícios disponíveis para não tornar o filme um documentário. Para começar, não há letreiros ou imagens de época para situar o público, mas, sim, um discurso de Murrow em uma festa em sua homenagem, que resgata toda sua carreira. As imagens de arquivo são usadas discretamente (McCarthy, no filme, é o próprio), livrando uma boa história de ser enfadonha. Há até mesmo um casal de atores ilustrativos, Joe (Robert Downey Jr.) e Shirley Wershba (Patrícia Clarkson), que acabam dando um tom leve à tensão do filme, apesar de, às vezes, ficarem um pouco deslocados na trama. Até mesmo a deliciosa trilha sonora, destacada no filme com a própria banda atuando em um dos estúdios da emissora, tem algo a acrescentar se prestarmos atenção às suas letras.

Sobram cigarros, máquinas de escrever e jornalismo romantizado em preto e branco, em seu eterno embate com a ética inerente da profissão e a guerra mercadológica dos meios de comunicação, na eficiente atuação de Strathairn. Clooney, no filme, é seu editor, um papel meio ‘banana’, mas que confirma sua promissora carreira, após uma pouco falada estréia como diretor com Confissões de uma Mente Perigosa, em 2002. Parece que o galã largou de vez o papel de bom moço e, conseqüentemente, está bem mais interessante.

Marília Almeida

6.3.06

Beckett – 100 Anos - Esperando Godot



TEATRO

A peça Esperando Godot, dirigida por Gabriel Villela, em cartaz no Sesc Belenzinho desde fevereiro e até o final deste mês, antecipou a comemoração do centenário do escritor irlandês Samuel Beckett (1906-1989), em abril. Ganhador do Prêmio Nobel em 1969, entre contos e poemas sem sucesso e peças montadas que seguiram o niilismo e diálogos marcantes de sua grande obra, foi criado Esperando Godot, aclamada pela crítica como sua obra-prima e marco do Teatro do Absurdo, após contínua rejeição de montadores. Escrita em 1949, foi revolucionária no sentido de transpor para o teatro a não-ação, inverter a linearidade da época e retratar com diálogo recheado de tiradas de humor negro proporcional à angústia e confusão que é a face do abandono humano.

Composta de dois atos, que, assim como em outras peças do autor, são, basicamente, a mesma encenação, com pequenas diferenças, Esperando Godot retrata dois vagabundos, que lamentam e relembram tempos melhores e esboçam arrependimento, esperando eternamente por Godot, do qual temos vagas referências do autor e que a crítica transformou desde uma metáfora de Deus (Deus, em inglês (God), com o sufixo diminutivo francês, língua original da peça, “ot”, que engrossa a ironia da peça quanto à questão religiosa), até mesmo a um literato provinciano, que defendia a encenação da tragicomédia quando esta era rejeitada pelas críticas do classicismo. Nesta longa espera, procuram por distrações e brincam com diálogos mal-formulados e personagens que passam pelo seu caminho. O jogo de palavras confusas, que se atropelam, conseguem se sobrepor à não ação que permeia a peça, reforçando a angústia e mantendo a tensão sobre o ‘nada’.

A montagem de Villela foi, em grande parte, ajudada pelo local, localizado no subsolo do teatro do Sesc. A impressão que uma vala circular metros abaixo da terra causa sobre a angústia dos personagens é eficiente e o palco circular permite a eles um movimento vicioso e estático. Mas, ao mesmo tempo, prejudica alguns efeitos que visam reproduzir o firmamento, logo contornados por sua criatividade e boa elaboração do figurino. Vilella, porém, dá continuidade à preferência dos diretores brasileiros por atrizes na encenação da peça, sendo que seu autor foi enfático quanto à sua preferência por atores masculinos. Antes de Vilella, houve a primeira montagem profissional brasileira, em 1968, em qual temporada Cacilda Becker teve seu derrame fatal; a dirigida por Antunes Filho e encenada por Eva Vilma, Lílian Lemmertz e Lélia Abramo em 1976 e, por fim, a montagem da Armazém Cia. de Teatro, com Patrícia Selonk.

Apesar da atuação impressionante de Vera Zimmermann como o carregador explorado Lucky e o Menino, que traz mensagens de Godot, além das eficientes de Magali Biff, como Vladmir, e Lavínia Pannunzio, como o arrogante ‘dono’ de Lucky, Pozo, Bete Coelho parece demasiada afetada na figura de Estragão, que parece necessitar de mais força e decisão para a indiferença inerente de suas falas. Além disso, houve a limitação do tempo da peça pela estrutura de horário do Sesc, apesar da já pesadas duas horas da montagem para uma peça densa como esta, que exige muito de seus atores. Mas o primeiro ato sai praticamente ileso e, o segundo, acelerado. Nada que altere o sentido da peça, que deve ser muito relembrado e, principalmente, confrontado, no próximo mês, assim como o foi por muitas décadas. Beckett, afinal, é isso: polêmica. E merece ser lembrado.

Marília Almeida

1.3.06

Capote dividido

CINEMA

FILMES DO OSCAR I



Quem lê a obra prima do jornalismo literário, A Sangue Frio, não percebe que seu autor, homossexual assumido, chegou a se apaixonar pelo protagonista, Perry Smith, assassino que acabou enforcado no corredor da morte americano, após matar uma família de fazendeiros no Kansas. Há no livro um desmembramento mais profundo da psicologia de Smith do que de seu comparsa do crime, Dick Hickock, e a tendência é acreditarmos que tinha uma perturbação mental e era, até mesmo, inocente, levado à tragédia por sua infância de abusos. Estes sentimentos controversos foram vividos pelo autor no longo processo de montagem de sua maior obra literária, desde o momento do assassinato, em 1959, passando pela perseguição aos assassinos até a sentença que culminou em suas mortes.

Foram seis anos torturantes que Benett Miller retrata em Capote, seu recorte da biografia do autor baseado no livro de Gerald Clarke. Com a atuação prodigiosa de Philip Seymour Hoffman, o filme é um retrato da extensa pesquisa de campo que o livro demandou para recriar os assassinatos (Capote chegou a ter seis mil páginas de anotações), além da possibilidade que criou ao transformar uma nota de rodapé do New York Times e um artigo que escreveria para The New Yorker em um livro, mostrando que o jornalismo cotidiano pode ser aprofundado e criativo. Mas seu foco é, principalmente, seu relacionamento dúbio com Smith e sua dedicação à obra, levada até às últimas conseqüências.

Ao longo do filme somos expectadores da fria condução de sua obra-prima, paralelamente à crescente afeição por seus personagens. Capote divide-se freqüentemente entre o solitário menino do meio-oeste vítima dos abandonos da mãe, que entende Smith, e o escritor metódico que deseja a morte de seus personagens para que possa finalizar sua obra. Uma bela passagem do filme tenta desvendar a personalidade controversa do escritor-jornalista e analisa que ele e Smith viviam na mesma casa, porém, Smith saiu pela porta dos fundos e, Capote, pela da frente. Esta parece ser a distância entre eles, o que faz com que Capote consiga o objetivo de humanizá-lo no livro, mas não querer sua libertação.

Apesar de muito elucidativo da personalidade de Capote e retrato do momento mais brilhante de sua vida literária, o filme retrata apenas em flashes o mundo das celebridades no qual estava inserido. Querido pela high society, dançou com Marylin Monroe, teve atrizes como grandes amigas, bebeu e fofocou muito até que se sentiu seguro para mostrar as estórias que ouviu em um livro após A Sangue Frio. Capote já havia reproduzido uma em Bonequinha de Luxo, perfil pitoresco, mas com sátira suave, tornado clássico do cinema com Audrey Hepburn. Desta vez o pequeno terror faria críticas contundentes, apesar de cuidadosamente colocadas sob pseudônimos e, após reproduzir alguns capítulos de seu futuro livro em jornais, foi visto como pária. Na segunda tentativa, perdeu a luta entre sua vida e a literatura e deixou-se levar pelas drogas. É o mal do escritor não- ficcional, que reproduziu a vida, demasiadamente, real.
Marília Almeida
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